sábado, 15 de abril de 2017

'Ressabiado', STF não deixará lista de Fachin prescrever, diz Carlos Ayres Britto

Gustavo Maia - UOL


  • Pedro Ladeira/Folhapress
    O advogado Carlos Ayres Britto foi ministro do Supremo Tribunal Federal de 2003 a 2012
    O advogado Carlos Ayres Britto foi ministro do Supremo Tribunal Federal de 2003 a 2012
Quando soube da decisão do ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no STF (Supremo Tribunal Federal), de autorizar a abertura de inquérito contra 98 pessoas, o advogado Carlos Ayres Britto, 74, não ficou surpreso.
Ministro do Supremo entre 2003 e 2012, ano em que presidiu a Corte, ele diz o Brasil chegou ao "ponto do copo transbordar e do basta". A hecatombe política provocada pela divulgação da chamada de lista de Fachin foi vista por Ayres Britto como um alento.
Otimista, o ex-ministro declarou ao UOL, nesta sexta-feira (14), que o caixa 2 está com os dias contados. "Chegou a vez do enfrentamento, da erradicação". Disse ainda que o STF está alerta e "até ressabiado".
Citou o aprendizado do Supremo com o julgamento da ação penal 470, mais conhecida como mensalão, do qual participou, e afirmou que não vê riscos de prescrição dos inquéritos derivados das delações da Odebrecht. Mas lembrou ser normal que o processo demore, para que seja garantida a ampla defesa dos investigados.
Ayres Britto também defendeu a redução do chamado foro privilegiado ao "mínimo do mínimo" e disse acreditar que o Congresso, se devidamente cobrado pela população, tem condições de fazer uma reforma política.
"A nova ordem, democrática, não vence por nocaute a velha ordem, autoritária, conservadora, preconceituosa, elitista, patrimonialista. Vai vencendo por pontos", ponderou.
UOL - Como o senhor recebeu a notícia da chamada "lista de Fachin"?
Carlos Ayres Britto - Já era esperado. Eu acho que ninguém ficou surpreendido não, nem mesmo com o número avultado [de grande volume] de pessoas a investigar penalmente, porque já se sabia dessa péssima tradição brasileira do caixa 2, notadamente.
Agora não é pela tradicionalidade, pelo costume, pela prática rotineira do caixa 2 que se vai fechar os olhos para a gravidade de tudo. Porque senão fica muito cômodo dizer que sempre foi assim, que não se faz política sem caixa 2, incidindo-se naquela advertência de que falava [a filósofa] Hannah Arendt: "a banalização do mal é pior que o próprio mal".
Não se pode aceitar isso como desculpa e até como motivo de perdão, de condescendência, passar a mão na cabeça dos que perpetram esse tipo de infração. Infração múltipla, à ordem financeira, à ordem tributária, à ordem eleitoral. E quando o caixa 2 vem em ambiência de negociata com o dinheiro público, aí já é delito propriamente dito, à luz do Código Penal.
Tendo em vista a complexidade dos casos derivados das delações da Odebrecht e a possível lentidão na avaliação dos processos envolvendo políticos, a Operação Lava Jato pode macular a imagem do Supremo, caso a Corte não consiga julgá-los com celeridade?
O Supremo está alerta, está de olho aberto, está até ressabiado, de certa forma. Por antecipação, ele sabe que está sob escrutínio, sob a vigília popular mais intensa.
Mas o Supremo aprendeu muito em matéria penal com a ação penal 470, popularmente chamada de mensalão.
Ali, o Supremo fez um experimento de desempenho processual, muito heterodoxo, caracterizado pelo gigantismo das apurações, das imputações penais, número de crimes, número de pessoas envolvidas, número de denunciados, enfim.
Pedro Ladeira/Folhapress
Joaquim Barbosa foi relator do mensalão no STF: 40 réus e 4 meses de julgamento
E racionalizou as coisas, fez uma formatação de julgamento competentíssima, vamos convir, partiu para um esforço concentrado de atuação de todos os ministros, a ponto de haver sessões plenárias de segunda a sexta, e em quatro meses julgou 40 réus, com dosimetria da pena para 25. E executou sua decisão.
Essa experiência há de ser levada em conta agora. O Supremo amadureceu no domínio da sua própria competência penal originária. E não é o mesmo Supremo, é outro, muito mais experimentado.
E já está atuando na base de força-tarefa. Nessa fase mesmo, tem o procurador-geral da República na origem das coisas, o ministro Fachin, e agora a Polícia Federal vai entrar em ação. Aquela força-tarefa [da Lava Jato] que se manifestava e continua a se manifestar no 1º grau, agora vai estar no Supremo. Sinal dos tempos.
A criminalidade se sofistica, se aperfeiçoa, e a reação do sistema de Justiça também se aperfeiçoa. É como se fosse a eterna luta entre vírus e antivírus, numa linguagem eletrônica, atualizada: o vírus da criminalidade enquadrilhada, sistêmica, e o antivírus de um sistema de Justiça que opera tripartitemente --Ministério Público, Polícia e Poder Judiciário. Novos tempos.
O senhor afirmou, no mês passado, que o escândalo do mensalão produziu uma revolução no Direito Penal, que dura até hoje. Mas desde o julgamento, em 2012, o volume de casos de corrupção envolvendo agentes públicos que vieram à tona só tem aumentado. Por que o senhor acha que isso aconteceu?
É que as malfeitorias, o patrimonialismo no Brasil, esse ovo da serpente, que hoje é chamado de corrupção sistêmica, é muito antigo, é multissecular. A ponto do padre Antônio Vieira, na metade do século 17, dizer, num trocadilho bem colocado, o seguinte: 'os governadores chegam pobres às Índias ricas e retornam ricos das Índias pobres'. Ou seja, os governadores eram mais do que ladrões, eram saqueadores. Eles pilhavam o tesouro, o patrimônio público.
A grande novidade para mim da ação penal 470 é que ali o princípio republicano de que todos são iguais perante a lei, que está na cabeça do artigo 5º da Constituição, chegou para lei penal, e por desdobramento para a lei eleitoral. Eram biombos em que se protegiam os moradores do andar de cima da sociedade brasileira. Isso é saneamento, depuração dos costumes. É motivo para a gente se alentar, e não para a gente se desanimar.
Mas os crimes continuaram porque a cultura da impunidade estava muito sedimentada, muito arraigada, muito enraizada no inconsciente coletivo. O Supremo estava aplicando as penalidades e certos segmentos ainda duvidando de que aquilo fosse pra valer.
Eu me lembro que as pessoas diziam que a denúncia de Antônio Fernando [o procurador-geral da República da época] contra 40 pessoas nunca será recebida pelo Supremo. Pois foi. Diziam: 'mas isso vai ser engavetado, não vai ser apurado, a instrução penal não vai ser aberta'. Se iniciou e terminou. 'Isso nunca vai ser posto em julgamento'. Pois colocamos na pauta.
'Isso não vai chegar ao fim'. Em quatro meses, contamos a história processual com começo, meio e fim, e debaixo do devido processo legal, com toda a legitimidade. Bastando lembrar que nós reservamos 17 sessões plenárias só para os advogados de defesa.
'Mas a coisa é muito complicada. Para dosimetrar todas essas penas o Supremo vai precisar de anos'. Pois em quatro meses, aplicamos as penas com as devidas dosimetrias. 'Nunca vai ser cumprido e ninguém vai para a cadeia'. 25 foram para a cadeia.
Essas coisas são culturais, são processuais. A nova ordem, democrática, não vence por nocaute a velha ordem, autoritária, conservadora, preconceituosa, elitista, patrimonialista. Vai vencendo por pontos.
Agora é uma nova fase. Veja o que está acontecendo: o Janot requereu, o Fachin deferiu. Agora vem a fase da apuração policial, de diligências. Vai demorar um pouco? Vai. É isso mesmo.
Há risco de prescrição para esses casos?
Acho que não tem não. Está todo mundo atento para evitar. Aquela frase atribuída a Thomas Jefferson [presidente dos Estados Unidos de 1801 a 1809] chegou ao Brasil: 'o preço da liberdade é a eterna vigilância'.
Ninguém deixa que se prescreva crime, nem a imprensa, nem a cidadania. A coisa é outra. O olhar mais aceso da sociedade civil organizada agora está projetado sobre o Supremo.
Que coisa boa! É uma nova ordem, uma nova cultura, uma nova mentalidade que vai se implantando.
Como o senhor vê a urgência parlamentar em votar o fim do foro privilegiado neste momento?
À medida em que a democracia avança, tudo vem a lume, nenhum tema é tabu, tudo se expõe a discussão em qualquer momento por quem quer que sejam, em qualquer ambiente, a qualquer tempo. E esse temas mais, digamos, delicados, chamados de 'hard cases', casos difíceis, vão sendo paulatinamente encarados.
Nós tínhamos um encontro marcado com esse tema, como tivemos com a proibição do financiamento empresarial de campanha eleitoral, que já resolvemos; com a igualdade de direitos entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos, já resolvemos isso; com o aborto; e agora chegou o tema do foro especial por prerrogativa de função, coloquialmente conhecido como foro privilegiado.
Nós vamos discutir publicamente esse tempo, devemos fazê-lo, mas já antecipando que a expectativa social forte é de redução dos limites dele é ao mínimo do mínimo, alcançando talvez apenas os presidentes da Câmara, do Senado e da República, e quem sabe os ministros do Supremo, porque decidem em última análise. E mais ninguém. 
O ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Henrique Neves afirmou essa semana ao UOL que "o caixa 2 sempre vai existir", independentemente do modelo de financiamento adotado. O senhor concorda?
Eu acho que se você tratar o caixa 2 reativamente, por um modo sancionador eficaz, você inibe a prática dele. Cientificamente, no âmbito do direito penal, o que inibe a criminalidade não é o aumento ou a severidade da pena, mas a sua eficácia, o seu cumprimento.
Então na medida em que se combate eficazmente a impunidade inibe-se a reincidência a reincidência de práticas criminosas, delituosas. Isso é científico. Se todo praticante de caixa 2 recebe o devido tranco, a devida sanção, os outros dizem 'olha, agora é pra valer, as coisas mudaram, ninguém fica impune'.
Eu acho que o caixa 2 está com os dias contados, a depender da reação do sistema de Justiça a essa prática. Porque o caixa 2 é uma erva daninha que vai contaminando a pureza dos nossos costumes eleitorais, partidários. Chegou a vez do enfrentamento, da erradicação.
Não dá mais para conviver com o caixa 2 porque ele desequilibra o jogo eleitoral. Os praticantes de caixa 2 têm mais dinheiro e mais condições de chegar sedutoramente, convincentemente aos eleitores. 
Essa história de que sempre haverá caixa 2 porque 'como é que os partidos vão se financiar sem ele?' é falaciosa. 
Uma vez [o físico alemão Albert] Einstein disse assim: 'quando a mente humana para uma nova ideia, é impossível retornar para o tamanho inicial'. A consciência coletiva já se abriu para a compreensão das coisas e não aceita mais a retórica da teatralidade, esses políticos que você fica ouvindo e tem a nítida certeza de que eles apenas representam que nos representam. É tudo uma encenação.
Chegou o ponto do copo transbordar e do 'basta'. Não dá mais. A sociedade ficou muito mais exigente.
O senhor acha que o Congresso, nas atuais condições, com grande parte dos seus integrantes sob investigação, tem legitimidade para executar reformas como a política, por exemplo?
Tem. Com depuração, aperfeiçoamento endógeno, interno. Cada um passa a cobrar um pouco mais de si mesmo. Socialmente, familiarmente, profissionalmente. Os agentes políticos hoje são cercados por todos os lados. Eles hoje já têm receio de uma reação em restaurantes, em shoppings, em aeroportos.
É um novo cuidado, um redobrar de atenções. É um entender que quem não seguir as regras do jogo não tem futuro, seja por consciência, seja por conveniência. O fato é que mais e mais a gente vai disseminando essa ideia de que o modo mais inteligente de ser é ser honesto, é ser transparente.
Chega de esperteza, naquele sentido ladino de atuar, milongueiro, como dizem os argentinos. A malandragem na política está cada vez mais com os seus espaços estreitados. É por isso que eu estou falando nessa linguagem mais alentadora. Eu não sou um desalentado com o que está ocorrendo. Nós tínhamos esse encontro marcado com a lista de Janot, com a lista de Fachin, com o mensalão, com coisas do gênero.
E teremos muitos outros encontros marcados com certos temas que antes eram tabus. Até a [liberação da realização da] Marcha da Maconha nós já decidimos no Supremo. Células-tronco embrionárias, proibição de nepotismo, e por aí vai. Quem diria que nós conseguiríamos emplacar essas decisões? E todas foram emplacadas.
Para o senhor, as investigações estão encontrando respaldo com a população brasileira? Desde a divulgação da lista, na terça, não houve nenhuma manifestação, por exemplo.
Há dois modos de você interpretar. Um é de que a cidadania refluiu, desaqueceu um pouco. O outro, e eu fico com a segunda versão, é que a cidadania está confiando na Justiça. Sabe que as coisas vão ser apuradas, os inquéritos vão ser instaurados. A instrução penal vai ser desenvolvida regularmente. Não é uma retração da cidadania, é um crédito de confiança.
Divulgação/Vem Pra Rua Brasil
Para Ayres Britto, "silêncio" das ruas após lista de Fachin não é preocupante
A imprensa está funcionando muito bem. As redes sociais se tornaram uma instituição viva. Os dois principais frutos da democracia talvez sejam esses --ou um só fruto mesclado: ativação da cidadania e liberdade de imprensa em plenitude.
E à medida de que você usa mais e mais facilmente os meios eletrônicos de comunicação, você vai deixando de ir às ruas para uma atuação enturmada de caráter político. Mas as ruas sempre estão ali. A qualquer momento elas podem mecanismos de civismo no plano coletivo.
Agora é preciso também que todos nós nos compenetremos de que não há ninguém culpado ainda. Estamos no plano da investigação. Não há discussão penal concluída. É preciso também não condenar por antecipação as pessoas.
O contraditório e a ampla defesa não podem deixar de ser observados. Quando a Constituição diz 'ampla defesa' não disse 'curta'. Eu me louvo muito nas palavras, nos fraseados da Constituição, porque o caminho para o entendimento das coisas muitas vezes é semântico.