sábado, 15 de abril de 2017

Livro reúne 28 contos de Dostoievski, alguns deles inéditos no Brasil

Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo

Em seus textos curtos, escritor russo assume a tarefa de decifrar os enigmas da própria alma


Se a obra do escritor francês Honoré Balzac consiste em um mosaico de pequenos mundos ao retratar as diversas camadas da sociedade, o russo Fiodor Dostoievski (1821-1881) mirou a intimidade e desvendou como nenhum outro a alma humana. “Dostoievski é tão grande”, escreveu o filósofo Nikolai Berdiaev, “que por si só basta para justificar a existência do povo russo.” Romancista-filósofo por excelência, ele talhou uma literatura que trata dos grandes problemas humanos, tornando-se o símbolo de um monumento à consciência. Antecipando Kafka e também tecendo a teia de toda uma literatura que passou por Machado de Assis e chegou a Albert Camus e Samuel Beckett, Dostoievski influenciou autores de todos os idiomas com obras como Crime e Castigo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov. E não foi apenas nos romances que o russo disseminou imagens que projetam a desumanização do homem – também os textos curtos despontam como um autêntico laboratório de criação.
É o que se nota no volume Contos Reunidos, lançado agora pela Editora 34. Trata-se de uma seleção de 28 contos, desde o primeiro que escreveu (Como É Perigoso Entregar-se a Sonhos de Vaidade, publicado em 1846 e até então inédito no Brasil) a O Grande Inquisidor, que saiu em 1880, um ano antes de sua morte. Com organização e apresentação de Fátima Bianchi, professora da USP, o livro oferece uma ampla definição de “conto”, pois inclui também breves novelas, narrativas autônomas dentro de romances e peças jornalísticas com viés ficcional. 
Foto: REUTERS/Alexander Demianchuk
Dosto
Catedral russa. Tragédias pessoais levaram o jovem Fiodor a se apegar ainda mais à religião
“Encontramos em sua obra uma realidade social e humana extremamente complexa, marcada pela instabilidade, pela ruptura de tradições, pela destruição de antigos valores morais e espirituais e a inexistência de valores alternativos”, observa Fátima Bianchi, no texto de apresentação. “Segundo o estudioso russo G. K. Schénnikov, ele percebeu que ‘não eram apenas as relações entre as pessoas, as formas de prática social, os interesses que mudavam, mas também a noção do homem sobre si mesmo e o seu lugar no mundo’. Daí sobressair-se em sua obra uma caracterização da realidade tão aparentada do ‘caos’.”
Dostoievski foi diretamente influenciado pelas agruras pessoais e especialmente pelas novas relações sociais introduzidas pelo capitalismo que marcaram a Europa e a Rússia, naquele século 19. Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em um pequeno hospital de Moscou onde seu pai, homem carrancudo, trabalhava como médico. A morte da mãe por tuberculose, 16 anos depois, provocou o início de uma difícil relação com o pai. O sensível Fiodor sofreu com essa convivência, que se consumou com um drama familiar: o assassinato do pai, por dois de seus servos, quando o escritor tinha 18 anos.
“Dostoievski desde o início procurou expressar um ponto de vista original sobre o homem, ao estabelecer para si a tarefa de decifrar os enigmas de sua alma”, comenta Fátima. “Ele anunciou várias vezes que o objetivo fundamental da suas aspirações era o estudo do homem na sua essência profunda. Numa carta a Mikhail, seu irmão e confidente, escrita aos 18 anos de idade, ele define a orientação básica de suas futuras buscas criativas: ‘O homem é um enigma. É preciso decifrá-lo, e ainda que passe a vida toda para decifrá-lo, não diga que perdeu tempo; eu me dedico a esse enigma, já que quero ser um homem’.”
Essas tragédias pessoais, de toda forma, levaram o jovem Fiodor a se apegar ainda mais à religião. Mas Dostoievski jamais demonstrou, por exemplo, a ironia revelada por Tolstoi pelos temas cristãos – o elemento mais importante da literatura de Dostoievski é a liberdade espiritual e a possibilidade de escolha entre Deus e o Mal. A culpa, no entanto, sempre esteve presente no caráter do escritor, ciente de que o homem frequentemente fracassa ao fazer tal escolha.
“Incontestavelmente, a compaixão profunda para com o sofrimento e a humilhação tornaram Dostoievski um dos maiores escritores humanistas da literatura mundial”, afirma Fátima. “Há uma sensação de dor presente em toda a sua obra, desde a primeira até a última, até nas circunstâncias mais inusitadas, como um sentimento dominante, que surge de um mal generalizado existente na sociedade, na natureza humana e em todo o universo.”
Desde sua estreia na literatura com Gente Pobre, em 1846, Dostoievski trabalhou com os aspectos inaceitáveis do homem: os maléficos. Na primeira fase da carreira, havia, como um constante pano de fundo, o socialismo utópico, de inspiração cristã, que se expressa na paixão lírica pelos mais pobres. “Sem maiores cerimônias, Dostoievski passa do humor e da farsa ao grotesco e ao sublime”, afirma o também pesquisador Samuel Titan Jr., no texto da orelha do livro. “Volta e meia, o resultado é desnorteante, tanto pelo engenho verbal como pelo empenho encarniçado em chegar ao cerne humano e histórico das situações e personagens em cena.”
Decisivo como laboratório literário, o conjunto de contos revela a compaixão profunda para com o sofrimento e a humilhação que tornou Dostoievski um dos maiores escritores humanistas da literatura mundial. Contos Reunidos traz cinco textos totalmente inéditos no Brasil: Como É Perigoso Entregar-se a Sonhos de Vaidade (1846), Pequenos Quadros (Durante uma Viagem) (1874), Plano Para uma Novela de Acusação da Vida Contemporânea (1877), O Tritão (1878) e Domovoi, conto inacabado que faria parte de Histórias de um Homem Vivido, mas Dostoievski não o publicou em vida – o texto foi encontrado após sua morte.
CONTOS REUNIDOS
Autor: Fiodor Dostoievski
Organização e apresentação: Fátima Bianchi
Tradução: Priscila Marques e outros
Editora: 34 (552 págs., R$ 89)
TRECHO
“Agora, estamos entrando no vagão. Os russos da intelligentsia, quando estão em público e em grande número, sempre são objeto de curiosidade para um observador interessado em aprender, ainda mais numa viagem. Nos vagões, as pessoas dificilmente conversam entre si; nesse sentido, são particularmente característicos os primeiros momentos da viagem. Todos estão como que indispostos em relação aos outros, todos se sentem desconfortáveis; trocam olhares de uma curiosidade desconfiada e invariavelmente misturada com hostilidade, ao mesmo tempo, fingem não notar e nem querer notar a existência uns dos outros.

Nos setores do trem onde ficam os membros da intelligentsia, os primeiros instantes de localização do assento e início da viagem são instantes de verdadeiro sofrimento, impossíveis em qualquer outro lugar”." (De ‘Pequenos Quadros (Durante uma Viagem)’)