terça-feira, 25 de abril de 2017

"Feche os ouvidos! Abra os olhos!", por Fernão Lara Mesquita

O Estado de São Paulo

Sem reformas que alterem o ‘sistema’ na essência não existe hipótese de salvação


É meio como a coisa dos assassinatos depois que passaram a ser filmados nas ruas. A gente sabe como as pessoas se matam desde Caim e Abel. Mas ver isso ao vivo é sempre muito chocante. Assistir às autópsias, então, faz a maioria das pessoas passarem a “raciocinar” com o estômago.
É o ponto em que estamos. Às vezes revolta, às vezes abre um oco na alma ir à minúcia de cada queda delatada, mas novidade mesmo não há. Sempre foi essa a regra do jogo e ela sempre foi clara. A coisa chegou aonde chegou porque nos últimos 30 anos ninguém, eleitor ou, principalmente, autoridade judiciária, jamais cobrou sua aplicação. É perfeitamente possível, hoje como antes, apurar quem, com “caixa 1” ou “caixa 2”, arrecadou para financiar eleições, quem aproveitou para se locupletar e quem, junto com isso, vendeu leis, vendeu a pátria, vendeu a alma ao diabo pelos faustos do poder. Pode-se traçar de onde saiu e aonde foi parar cada tostão movimentado. As “contrapartidas” viraram leis, MPs, contratos e contas na Suíça. Nada que se possa ocultar. Estão nos anais do BNDES, bilhão de dólar por bilhão de dólar, as operações de cooptação de um “baixo clero da ONU” que estenderia para além das fronteiras da América Latina bolivariana os sonhos de poder e os métodos para conquistá-lo desenhados no Foro de São Paulo e ensaiados no “mensalão”.
Há, portanto, enormes diferenças na motivação e na extensão da ação e dos danos produzidos por cada ator da novela da destruição do Brasil. Isso de condenar a regra que não se aplicou, em vez do desleixo de não tê-la aplicado, é o padrão que deságua sempre nas insidiosas “jabuticabas” que nos têm mantido fora do mundo e na miséria.
A continuação da parte dessa história que tem como horizonte o “excesso de democracia” praticado na Venezuela depende de se conseguir apagar essas diferenças. É nessa confluência que a força reacionária da “privilegiatura”, pela primeira vez ameaçada de recuo pelas reformas de Temer, se veio somar à correnteza do “lulismo”. Mas o pior foi mesmo ter o acaso conspirado mais uma vez contra o Brasil ao fazer coincidir tudo isso com o auge da Operação Lava Jato. É nesse cruzamento infeliz de forças que, uns arrastando, outros sendo arrastados pelos vazamentos sucessivos, se viram os guardiões da justiça forçados a abrir o pacote da Odebrecht “em bruto”, o que aplainou as diferenças e de novo “zerou” o placar eleitoral.
A situação do Brasil, entretanto, não tem mais conserto com paliativos. O acerto de contas entre os dois Brasis não é mais uma questão de opção. É uma impossibilidade matemática não fazê-lo. Só falta saber em quantas etapas sucessivas e com que dose adicional de desperdício e morticínio ele se dará.
O Estado toma 36% do PIB em impostos e mais 10% do PIB na forma de déficits. São 2 trilhões e 500 bilhões de reais. Na União, 54% dos gastos são com aposentadorias e outros benefícios para inativos, 41% são com salários de funcionários ativos. Só 5% são investidos em qualquer coisa que não seja pessoal. A média das aposentadorias pagas no “nosso” Brasil é de R$ 1.600. No “deles”, de R$ 9 mil no Poder Executivo, que propõe a reforma, e de R$ 25 mil no Legislativo, R$ 28 mil no Judiciário e R$ 30 mil no Ministério Público, que, em voz alta ou em voz baixa, resistem a ela. Dentro de cada um desses Poderes, o abismo entre os salários básicos e os balúrdios acumulados por dentro e por fora da lei, com fraude em cima de fraude, pelos respectivos “marajás” é ainda mais fundo que o que existe entre salários e aposentadorias dos brasileiros de 1.ª e 2.ª classe. Como “eles” são, ao todo, 10 milhões e os “marajás”, muito menos ainda, tem-se que perto de 40% do PIB fica nos bolsos de menos de 5% da população, um grupelho que, em pé, não enche a Praça dos Três Poderes, com a maior parte dessa fatia concentrada nos de uma ínfima minoria dentro dessa minoria. Se, portanto, a reforma da previdência privada é um imperativo demográfico, a da pública é um imperativo de salvação nacional. Ou nós acabamos com isso ou “eles”acabam conosco.
O que a extensão das delações está provando é que de PSOL a pastor, de Odebrecht a trabalhador braçal aliciado por advogadozinho achacador, tudo o que ingressa no “sistema” ou apodrece ou é expelido. Sem reformas que o alterem na essência não existe hipótese de salvação.
Corrupção é, essencialmente, déficit de democracia; impotência do representado diante da falcatrua do representante. “Estatizar” o financiamento de campanhas não conserta isso e implica a “lista fechada”, que agrava essa impotência. O atrelamento dos sindicatos ao imposto sindical, por Getúlio Vargas, condenou à morte a democracia no Brasil. O cerco foi fechado com uma “justiça do trabalho” que, ao institucionalizar o achaque, passou a corromper a base da sociedade. O “apelegamento” dos movimentos sociais e partidos políticos pela Constituição de 88 foi a pá de cal. É impossível pensar em “democracia representativa” num país onde todas as fontes primárias de representação da sociedade são sustentadas por impostos e independentes de seus representados. Contornar a indústria do achaque pela “terceirização” é condição essencial para a ressurreição do emprego no Brasil. Mas acabar com o imposto sindical é inverter o polo do mais antigo e fundamental dos vetores de forças negativas que atuam sobre o “sistema”. O financiamento de campanhas pelo Estado vai na direção contrária. O que torna eleições baratas de modo orgânico e saudável é encurtar o raio do território onde um político está autorizado a pedir votos. E isso se consegue com eleições distritais, método que, de quebra, torna explícito o laço de dependência entre eleitores e eleitos, sem o qual é impossível uns controlarem os outros.
Sim, a Lava Jato é intocável. Mas feche os ouvidos ao barulho e abra os olhos às evidências. Sem reformas não vamos a lugar nenhum. E fazê-las aos pedaços vai custar mais do que podemos pagar.