quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Merval Pereira: A defesa da sociedade

Com O Globo

 O julgamento de ontem do Supremo Tribunal Federal (STF), que manteve a decisão de permitir a prisão de condenados em segunda instância, foi uma disputa entre os que defendiam a tese da presunção de inocência dos réus até o trânsito em julgado, e, o que prevaleceu, a ideia de que o direito penal tem que ter a efetividade para proteger a sociedade e seus direitos fundamentais, como a vida, a integridade física e o patrimônio das pessoas, além da moralidade administrativa, como definiu o ministro Luís Roberto Barroso em seu voto.
A presidente do STF, ministra Carmem Lucia, desempatou a votação baseando sua decisão na mesma tese de que a sociedade precisa ter a certeza de que a Justiça atuará com rapidez e eficiência para defendê-la. O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, manteve seu voto contrário, baseado na defesa do sistema democrático. Segundo sua interpretação da Constituição, o trânsito em julgado é uma exigência clara para a prisão de um réu, e a democracia não resistiria caso os direitos civis dos cidadãos não fossem preservados em sua totalidade.
Celso de Mello refutou a tese que prevaleceu, segundo a qual o trânsito em julgado acontece na segunda instância, pois os recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao STF são extraordinários e não têm efeitos suspensivos. O ministro Dias Toffoli, que no primeiro julgamento votara a favor da prisão a partir de decisão da segunda instância, fez uma inflexão em sua decisão, acatando em parte o voto do relator, ministro Marco Aurélio de Mello.
Uma alternativa dada por ele, e que Toffoli acatou, era de que o trânsito em julgado fosse definido no primeiro recurso ao STJ.  Tanto o ministro Barroso quanto Gilmar Mendes argumentaram que a presunção de inocência é um princípio que deve ser ponderado, de acordo com os julgamentos feitos. À medida que as condenações na primeira e na segunda instância acontecem, a presunção de inocência perde seu peso, enquanto, para Barroso, outros valores abrigados na Constituição, protegidos pela efetividade do direito penal, devem prevalecer.
O ministro Luiz Facchin, que foi o primeiro a abrir a divergência com o relator, lembrou que a possibilidade de prisão em segunda instância prevalecia até 2009, inclusive depois da promulgação da Constituição de 1988, utilizada como argumento pelos que defendiam a prisão apenas depois do trânsito em julgado.
O ministro Ricardo Lewandowski utilizou estatísticas do Ministério Público para alegar que há uma grande incidência de decisões que são revertidas nos tribunais superiores, como argumento para mostrar o que seria, na sua opinião, o perigo de condenar à prisão logo após a decisão em segunda instância.
Foi contestado por vários ministros, inclusive por que havia misturado recursos com habeas-corpus, o que foi considerado um erro estatístico. Como salientou o ministro Teori Zavascki, entre outros ministros, a grande incidência de habeas-corpus só demonstra que esse é um instrumento de defesa dos acusados que tem sido muito útil como proteção dos réus.
O ministro Luís Roberto Barroso procurou demonstrar como o sistema funcionava mal, citando exemplos emblemáticos em que o retardamento na punição levava a justiça ao descrédito. O Ministro afirmou que não é o direito penal o protagonista das transformações que o Brasil precisa: “um país se faz com educação de qualidade, distribuição adequado de riquezas e debate público democrático e de qualidade”.
Porém, disse ele, a ausência de um direito penal minimamente sério fomentou a delinquência no Brasil, sobretudo os casos de corrupção e crimes do colarinho branco. Embora a decisão de ontem seja fundamental para o combate à corrupção, inclusive está entre as 10 medidas propostas pelo Ministério Público, no que se falou mais durante o julgamento foi dos presos comuns, pois esta foi a base da argumentação dos que defendiam a tese do trânsito em julgado na última instância, a maioria defensora de acusados na Operação Lava-Jato.
Essa argumentação foi desmontada por vários ministros, que demonstraram que o sistema do jeito que está organizado favorece apenas os criminosos de colarinho branco que têm dinheiro para pagar bons advogados e explorar as brechas do sistema, que permitia até mais de 20 recursos, o que fazia com que os processos pudessem levar 10, 20 anos, e em muitos casos prescrevessem antes da decisão final.
O ministro Gilmar Mendes lembrou que quando esteve à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) levou à frente um mutirão presidiário para tentar minimizar os graves problemas das prisões desumanas e dos presos sem culpa formada. A certa altura, dirigiu-se ao advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e perguntou: porque nunca houve um movimento como esse para evitar que presos comuns fiquem nas prisões anos e anos sem julgamento?