sexta-feira, 4 de julho de 2014

"O juiz que amava os Beatles", port José Casado

O Globo

Thomas Griesa, que julga a disputa da dívida argentina, já teve John Lennon no banco dos réus 



No banco dos réus estava Lennon. John Winston Lennon, cujo sobrenome mais tarde incluiria “Ono”, de sua mulher Yoko. Na bancada da acusação via-se Morris Levy, produtor fonográfico, também conhecido por negócios obscuros com a “famiglia” Gennovese, um dos ícones da máfia italiana em Nova York.

À frente, destacava-se um juiz de 40 anos de idade, politicamente conservador, há pouco tempo nomeado pelo presidente Richard Nixon para o Tribunal do Distrito Sul de Nova York. Naquele 1976 os Estados Unidos e o Partido Republicano tentavam superar o trauma político causado por Nixon, que renunciara à presidência dois anos antes para evitar o impeachtment na esteira do escândalo conhecido como Watergate.

Lennon foi lá se defender. Levy o acusara de plagiar Chuck Berry, autor de algumas das mais perfeitas sínteses do blues com o country que resultaram no rock. Em 1956 Berry lançou "You Can't Catch Me", marco no gênero, cujos direitos mais tarde foram comprados por Levy.

Os Beatles eram parte da história, Lennon avançava numa carreira solo entremeada por confusões pessoais, a partir da separação de Yoko Ono. A bordo de garrafas de álcool e drogas partira numa viagem de cabotagem entre versos e compassos inovadores, como os de "Come Together".
Levy alegava que dois versos dessa canção eram variações poéticas literais de "You Can't Catch Me".

Lennon não só discordou, como revidou: acusou Levy de fazer uma edição pirata de um de seus discos solo, abusando da má qualidade técnica e com uma fotografia na capa "danosa" à sua imagem pública, pois estava com cabelos longos. A foto realmente era ruim compondo um trabalho gráfico deplorável.

O juiz se divertia, registram diferentes livros. Era um autêntico representante da geração de americanos que amava os Beatles e os Rolling Stones. Conservador, defendera a Guerra do Vietnã no governo Nixon - Lennon, ao contrário, chegou a devolver a sua MBE (título e medalha de Membro do Impérito Britânico) em 1969, pelo apoio do Reino Unido aos EUA nesse conflito.

Na corte Lennon repetiu as acusações a Levy, com ênfase no "dano moral" da fotografia por se achar "feio e cabeludo". Exibia um corte curto, quase tradicional.

Levy fez graça. Argumentou que Lennon havia cortado o cabelo especialmente para aquela audiência.

O beatle (esse título é eterno, irrevogável) retrucou: "É mentira, sempre tomo banho e corto o cabelo a cada 18 meses".

Reza a lenda ter sido uma das poucas vezes em que se viu o juiz Thomas Poole Griesa sorrindo no tribunal. Mais tarde, emitiu uma sentença favorável a Lennon.

Quatro décadas depois, Griesa aos 84 anos, no mesmo Tribunal do Distrito Sul de Nova York, está no centro de outro caso de grande repercussão. Sua sentença contra Argentina, obrigando-a a pagar antes a quem não aceitou o acordo de renegociação da dívida externa, tem o poder de dinamite na base do sistema financeiro internacional: subverteu regras não escritas de um sistema bancário que nos últimos 40 anos acomodou mais de 60 moratórias e reestruturações de dívidas internacionais — a maioria da América Latina, entre elas do Brasil, e também da África. Agora os bancos estão obrigados a mudar toda a base contratual nas negociações de dívidas externas. Significa, na prática, reinventar um dos principais instrumentos das finanças globais.

Esse caso transita pelo tribunal há uma década. Até agora não viu uma única fotografia em que o juiz Griesa esteja sorrindo.