JOSÉ FUCS - Época
Para o cineasta, as “patrulhas ideológicas” ainda existem no Brasil, mas hoje cada um pode fazer o que bem entender, independentemente de ser de esquerda ou de direita

O cineasta Cacá Diegues já comprou brigas feias com a esquerda. A maior delas foi no final da década de 1970, quando criou a expressão “patrulhas ideológicas”, para se referir a setores da esquerda ortodoxa que tinham uma visão restrita das artes e da cultura. Hoje, aos 74 anos, Cacá vive uma fase mais diplomática, no estilo “Cacazinho paz e amor”.
Diz que não tem mais interesse na discussão política e que, aproveitando a idade, não pretende votar nas eleições deste ano. No começo de agosto, deverá lançar na Flip sua autobiografia Vida de cinema (Editora Objetiva, 678 págs.). Na obra, faz um balanço da carreira e relata sua convivência com os principais cineastas do país.
Cacá Diegues – Porque foi ali que formei minha cabeça, que encontrei as pessoas que tinham os mesmos sonhos, que aprendi o que deveria ser o cinema brasileiro. Aqueles anos de Cinema Novo, que não sei na verdade quantos foram, representaram um período de ouro em minha vida. Sinto saudade de tudo o que vivi naquela época. As tertúlias de que a gente mudaria o mundo, nossas ideias políticas, cinematográficas. Isso tudo foi muito importante para mim.
ÉPOCA – Como o senhor analisa hoje, quase 60 anos depois, aquele movimento que protagonizou ao lado de alguns dos maiores cineastas do país em todos os tempos, como Gláuber Rocha e Nelson Pereira dos Santos?
Diegues – Vejo como a fundação do cinema moderno no Brasil, um momento indispensável na cultura brasileira do século XX. O Cinema Novo é um filho de tudo o que houve antes na cultura brasileira, desde o Modernismo. É fundamental não só na história do cinema, como da cultura brasileira. Mário Carneiro (1917-2008), nosso fotógrafo, dizia que o Cinema Novo começou com os primeiros filmes de cada um de nós, mas ninguém sabia quando acabava.
ÉPOCA – Em 1976, com Xica da Silva, o senhor adotou uma estética mais hollywoodiana, mais bem produzida. Muita gente passou a considerá-lo como uma espécie de traidor dos ideais do Cinema Novo, de produzir um cinema “nacional e popular”. Como o senhor vê as críticas feitas naquele período a sua obra?
Diegues – Essas críticas ao Xica da Silva se tornaram um marco na discussão cultural e política do Brasil, porque as pessoas queriam perenizar uma forma de fazer cinema que eu queria mudar. O Cinema Novo não era uma só forma de fazer cinema. Nosso compromisso era com a realidade brasileira e com a fundação de um cinema moderno no Brasil. Xica da Silva contribuiu para isso. As pessoas não acreditavam que os escravos, os oprimidos, podiam ter individualidade. Eles têm individualidade. Têm seus desejos. Não vivem só de ideologia. Às vezes, as pessoas confundem o amor pelo miserável com o amor pela miséria. Não é meu caso.
ÉPOCA – Naquele momento, o senhor criou a expressão “patrulhas ideológicas”, para se referir a quem critica os produtos culturais que iam contra os preceitos da esquerda ortodoxa. Qual sua visão hoje daquele episódio?
Diegues – Naquela época, havia quem insistisse numa espécie de censura ideológica à produção cultural. Estavam muito preocupados em dividir o mundo entre o bem e o mal. Isso era resultado da Guerra Fria. Eu era contra isso, como sou até hoje. O artista não pode ser um intelectual orgânico, do partido, e colocar a ideologia acima de sua criação. Criei a expressão “patrulhas ideológicas” em homenagem a essas críticas. Isso gerou uma discussão muito animada. Teve muita gente contra e muita gente a favor. Tive um grande apoio do Caetano Veloso, do Chico
Buarque, do Roberto DaMatta.
ÉPOCA – O senhor levou muita paulada da esquerda, não?
Diegues – Cansei de levar porrada, mas não ligo, não. Na época, disse e repito hoje que, se a fogueira for para iluminar o caminho, não ligo de ir para a fogueira.
ÉPOCA – As patrulhas ideológicas continuam ativas hoje?
Diegues – Ainda existem, mas não são mais um problema grave. Não são mais um impedimento para a criação artística. A gente se livrou delas com o fim da Guerra Fria. O Brasil vive numa democracia. Ela precisa ser aperfeiçoada, mas cada um pensa o que quer e como quer. Todo mundo tem o direito de fazer o filme que bem entender. Agora, o filme tem de ser bom, independentemente de ser de direita ou de esquerda, porque traz coisas novas, encanta, faz pensar. A disputa ideológica e cultural faz parte da democracia. Se você não admitir que seu contrário tenha pelo menos 5% de razão, sua atitude está errada.
ÉPOCA – Em 2009, o produtor Luiz Carlos Barreto foi muito criticado por ter feito o filme Lula, o filho do Brasil, considerado “chapa branca”. Ele escreveu sobre a volta das patrulhas ideológicas. O senhor concorda com ele?
Diegues – As patrulhas ideológicas não são privilégio de uma linha ideológica. Como disse, hoje elas não têm a importância que tiveram naquele momento crucial da redemocratização e do fim da ditadura. A juventude cinematográfica, a juventude criadora, que produz cultura hoje, não está muito interessada nisso. Agora, não me lembro desse artigo do Barreto. Não sei por que ele disse isso, mas não concordo, não.
ÉPOCA – Nos últimos anos, o governo tem sido questionado sobre os critérios de distribuição de verbas públicas e patrocínio cultural. O que o senhor pensa da política cultural do PT?
Diegues – Não acho muito diferente da que havia antes. Há discussões pontuais. A Ancine (Agência Nacional de Cinema) está muito burocratizada, mas não vejo diferenças na essência. Sei que tem muito petista que gosta do governo, como tem peessedebista (do PSDB) e peessebista (do PSB) que não gosta. Não sou uma coisa ou outra. Já votei no Lula, no Fernando Henrique, no Serra. Não tenho o menor problema em mudar de opinião. Não tenho raiva do PT nem do PSDB. Hoje não tenho nenhum interesse na discussão política. Vou até aproveitar minha idade para não votar neste ano. Tudo isso está muito chato. Ninguém se destaca no cenário político brasileiro que me desperte alguma paixão.
ÉPOCA – Antes da Queda do Muro, em 1989, o senhor disse que o capitalismo era “a invenção mais diabólica e mais desumana de todos os tempos”, mas que não estava a fim de trocá-lo por “campos de concentração para intelectuais ou hospitais psiquiátricos para dissidentes”. Ainda tem a mesma opinião?
Diegues – Repito mais uma vez: acho o capitalismo uma invenção diabólica, mas nem por isso algumas de suas virtudes devem ser abandonadas. O desejo de melhorar na vida é uma coisa natural do ser humano. O capitalismo é uma invenção do homem para justificar uma série de coisas que estão aí, que já existiam, mas a gente não sabe como surgiram, como aconteceram. Eu preferia uma sociedade mais justa, que olhasse mais o miserável, aquele que não tem oportunidade. Agora, antes de ser capitalista ou socialista, sou um democrata. É o regime em que você pode dizer o que quer, em que o confronto não é criminoso, a crítica não é deplorável, e você pode fazer o que quer de sua vida. Isso é essencial, seja no capitalismo ou no socialismo. O mundo está cada vez mais complexo, e as ideias cada vez mais fragmentadas. Hoje, é difícil dizer se a China é um país capitalista ou não, se a Suécia é capitalista ou não, se a França é capitalista ou não. Isso tudo perde sentido.
ÉPOCA – Qual sua visão do cinema brasileiro hoje?
Diegues – Vivemos o período mais fértil da história do cinema brasileiro. O Cinema Novo promoveu a fundação do cinema moderno no Brasil, mas éramos poucos e não tínhamos a repercussão que o cinema nacional tem. O cinema brasileiro se diversificou. Conquistou uma parcela importante do público. Também tem presença nos festivais, na crítica artística mundial. Produzimos mais de 120 filmes por ano e alcançamos 20% do mercado nacional – algo que raramente aconteceu em nossa história. Isso se deve em boa parte aos jovens cineastas. Eles encontraram um filão que deu certo: a comédia urbana, que mexe com os costumes.
ÉPOCA – Como o senhor vê o futuro do cinema na era do
YouTube e da Netflix?
Diegues – Há uma mudança radical na difusão cinematográfica. Cada vez mais a sala do cinema será uma vitrine minoritária para vender o produto para essas outras formas de difusão. Hoje, você não passa mais o filme só na sala de cinema. Passa na televisão aberta, na paga, no DVD. Isso tudo acabará com o cinema como ele é hoje. Agora, o audiovisual não termina nunca. É uma invenção humana extraordinária, que Eisenstein chamava de “a maior invenção do imaginário humano”.
ÉPOCA – O senhor ficou rico com o cinema?
Diegues – Não tenho um bem, meu filho. Não teria vergonha nenhuma de dizer que sim, porque não acho que seja errado ficar rico, mas os únicos bens que tenho são os filmes que eu fiz.